A temática do duplo é algo que remonta aos
tempos da antiguidade e que vem se desenvolvendo e modificando através dos
séculos; ao longo desse tempo essa questão vem sendo abordada em diferentes
áreas, tais como as artes plásticas, o cinema e a literatura. Nesta última, há
uma infinidade de títulos onde o duplo se faz presente, seja como tema central,
seja como um aspecto da trama, sempre em suas mais variadas formas de
representação. Adilson dos Santos (2009) afirma que fazer uma síntese do tema
do duplo não é uma tarefa fácil de se realizar, uma vez que este pode ser
observado sob várias perspectivas, dependendo do contexto, de que e de onde se
fala. As incontáveis transformações que sofreu aumentam ainda mais tal
dificuldade. Pode-se apenas dizer, com segurança, que as histórias de duplo
apresentam uma face invariável de impasse, propiciadora de um sentimento de
insegurança e mistério, nem sempre decifrável ou de compreensão plena, mas, nem
por isso, menos estimulante.
Há relatos de antigas lendas nórdicas
e germânicas onde já se figurava a presença do duplo. Para eles o aparecimento
do duplo era considerado um acontecimento funesto, um mau agouro, que
pressagiaria a morte. O caminho percorrido pela temática do duplo na história
da literatura mundial poderia ser divido em duas partes: na primeira parte, da
antiguidade até o século XVI, o duplo aparece como figuração do homogêneo, simbolizando
o idêntico e sendo retratado através do conceito de gêmeos ou sósias; na
segunda parte o duplo é a expressão da heterogeneidade.
A partir do final do século XVI a
ideia de duplo como conceito homogêneo começa a ser abandonada, embora não seja
totalmente extinguida. Com o nascimento da ideia de “subjetividade” no século
XVII, ocorre uma profunda mudança na representação do duplo. Com a chegada do
século XIX o duplo começa a representar a divisão do eu e a partir daí, cada
vez mais se é problematizada a heterogeneidade, em lugar da homogeneidade.
Este duplo heterogêneo configura-se
através da ideia de existência e/ ou criação de um outro, que pode
apresentar-se “como um ser complementar e/ou auxiliar; na condição de um
substituto perfeito; na qualidade de protetor ou de ameaçador e perseguidor;
como agente responsável por trazer à tona uma outra faceta até então desconhecida;
[..] enquanto opositor e/ou inimigo e etc.” (SANTOS, 2009, pg.71)
É possível dividir
esse “outro”, ainda, em dois tipos diferentes de duplo: o duplo exterior, que
se configura como uma entidade cuja a origem é extrínseca ao “eu”. A existência
desse duplo “dá-se quando há o confronto entre indivíduos cuja diversidade
revela-se inevitável: de um lado, tem-se o ‘eu’, do outro, aquele que é por ele
percebido como diferente, isto é, o ‘outro. ’” (SANTOS, 2009, pg. 74); o
segundo tipo de duplo, é o duplo interior, cuja gênese fundamenta-se no eu. No
duplo interior, o ‘outro’ não é uma entidade que se formou externamente, mas
sua origem dá-se no interior do sujeito.
Nesta modalidade, o duplo surge como
representação de uma cisão interna, de um conflito psíquico. O indivíduo libera
partes aprisionadas de si mesmo, projeta seus demônios interiores (ansiedades,
perturbações, medos, angústias e etc.) e, extraordinariamente, materializa-os
na forma de um segundo ‘eu’. Este, refletindo o seu interior e assumindo-se-lhe
exterior — como se fosse uma sombra, um reflexo —, conquista uma autonomia sem
precedentes, adquire existência própria, levando o sujeito no qual fundamentou
sua gênese a intimidar-se com sua presença e, até mesmo, a encará-lo como
antagonista. Sua existência pode inclusive conduzi-lo à morte ou à loucura.
(SANTOS, 2009, pg. 75).
Dentre as obras literárias que
abordam a temática do duplo interior encontram-se o conto William Wilson de
Edgar Allan Poe e o livro Clube da Luta de Chuck Palahniuk. Ambas foram
escritas e publicadas em épocas completamente diferentes: William Wilson é um
conto do século XIX, enquanto Clube da Luta é um romance contemporâneo;
entretanto, o elemento do duplo presente em ambas as aproxima seja por
semelhanças ou por diferenças.
O conto de Edgar Allan Poe apresenta
um protagonista que não revela seu nome; este, apresenta-se como William
Wilson, pois, segundo ele mesmo, a página em branco diante de si não deveria
ser manchada com seu verdadeiro nome. Na primeira parte do conto o narrador
descreve tanto sua natureza quanto a natureza de sua família e conta como ele
conheceu aquele que durante todo o restante da história viria a ser o “outro”,
o “duplo”. Durante seus tempos de escola, Wilson-narrador vem a conhecer um
garoto que, embora não possuísse nenhum parentesco com ele, possuía seu nome e
seu sobrenome; eram, ainda, os dois muito parecidos, motivo pelo qual as demais
pessoas muitas vezes os tomavam como irmãos.
No romance Clube da Luta, o
protagonista não possuí nome nenhum, nem mesmo um nome inventado, tal qual
William Wilson. O livro é narrado todo em primeira pessoa, através da perspectiva
do protagonista, um homem que vive “engolido por uma rotina sem muito sentido,
a não ser o de perpetuar o modo de vida capitalista orientado pelo consumo. ”
(BENEVIDES, 2007, pg.12). Atormentado por uma incurável insônia, o narrador de
Clube da Luta começa a frequentar grupos-de-apoio para pacientes que sofrem de
diversas doenças com a intenção de encontrar algum conforto e se sentir mais
vivo. Porém, ele só começa a encontrar conforto de verdade ao conhecer Tyler
Durden. “Seu nome era Tyler Durden e ele era projecionista do sindicato, garçom
de um hotel no centro e ele me deu seu número de telefone. E foi assim que nos
conhecemos”.
Pouco tempo depois de conhecer Tyler,
ocorre um incêndio na casa do protagonista, levando-o a morar com seu novo
amigo. Tyler e o narrador se tornam inseparáveis e juntos eles fundam o Clube da Luta, um lugar onde os
participantes se enfrentam em combates corpo-a-corpo com a única intenção de
competir, extravasar suas angústias e curar suas mágoas.
A relação do narrador de Clube da
Luta para com Tyler é de uma intensa amizade; aos olhos do protagonista, Durden
é um ser humano cativante, impressionante, fascinante, digno de admiração. O
protagonista quer ser como Tyler.
Já a relação entre Wilson-narrador e William Wilson é um pouco mais complexa;
inicialmente nem mesmo o próprio narrador é capaz de defini-la com segurança,
para ele, os sentimentos que ele nutria por William
Wilson “formavam uma amálgama extravagante e heterogênea — uma animosidade
petulante que não era ainda ódio, estima, ainda mais respeito, uma boa parte de
temor e uma imensa e inquieta curiosidade. ” Ainda assim, esses sentimentos
conflitantes acabam dando lugar a algo desagradável. Todos os colegas de escola
do narrador lhe admiram e são submissos; todos, exceto William Wilson, o que faz com que a animosidade que o protagonista
nutre com relação a este só aumente. Uma noite, Wilson-narrador visita o quarto
de William Wilson e ao perceber que
os dois são ainda mais idênticos do que havia notado até então, abandona a
escola. Entretanto, seu homônimo não o vai abandonar para sempre e William Wilson reaparece mais duas vezes
em seu caminho. Após o segundo reaparecimento, Wilson-narrador vê-se perseguido
continuamente por seu igual em nome e aparência; não há lugar que vá onde não
encontre William Wilson, sempre
pronto a atormentá-lo e estragar seus planos.
Wilson-narrador descreve William Wilson como uma sombra, alguém
cuja voz não é nada além de um sussurro. No começo do conto, o narrador diz que
seu homônimo tem um problema nas cordas vocais, de modo que sua voz é sempre
baixa e sussurrante. Apesar de idênticos em nome e aparência, Wilson-narrador e
William Wilson são diferentes em
natureza. O primeiro é de comportamento perverso e torpe, o segundo o completo
oposto disso. Sempre que o protagonista age de acordo com seu mau-caráter, William Wilson aparece e o delata.
Até que um dia, em uma festa à
fantasia, enquanto procura pela esposa do anfitrião, Wilson-narrador
encontra-se mais uma vez com William
Wilson. Cansado de ser atormentado pela presença de seu igual, o
protagonista o leva até uma sala privada e lá o golpeia com a espada que
portava. Após atingir William Wilson
com um golpe mortal, o narrador vê algo que o espanta:
Um
vasto espelho — em minha perturbação pareceu-me assim, a princípio — erguia-se
no ponto onde antes nada vira; e, enquanto me dirigia tomado de horror, para
esse espelho, minha própria imagem, mas com o rosto pálido e manchado de
sangue, adiantou-se ao meu encontro, com um passo fraco e vacilante.
É nesse instante que ocorre a
compreensão de que o homônimo do protagonista é um duplo interior. E é nesse
momento que William Wilson fala, pela
primeira vez, com uma voz alta e com a boca do próprio narrador. “—Venceste e
eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto... morto para o Mundo,
para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias... e vê em minha morte, vê
por esta imagem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo. ”
Em Clube da Luta, o caminho para a
compreensão do fenômeno do duplo começa a dar-se a partir da criação do Projeto Desordem e Destruição. Tyler,
portador de uma filosofia de vida peculiar e de uma altíssima capacidade de persuasão,
triplica o número de locais onde acontece o Clube
da Luta e começa a recrutar os participantes para sua nova empreitada, o Projeto Desordem e Destruição. Aos
poucos o protagonista e Tyler vão se tornando mais distantes; o narrador do
livro começa a pensar que seu amigo talvez esteja indo longe demais em seus
ideais. Tyler começa a nunca parar em casa e a residência que divide com o
protagonista fica cada vez mais infestada de membros do Projeto Desordem e Destruição. O narrador da história resolve,
então, procurar seu amigo e começa a viajar por todo os EUA. Lentamente, ele
começa a perceber que em todos os lugares que visita os conhecidos de Tyler o
chamam de “senhor” e agem de modo muito estranho, sem nunca darem nenhuma
informação. Até que um estranho em um bar lhe diz que ele visitou esse mesmo
local na semana passada, chamando-o de “senhor Durden”. O protagonista nega
categoricamente ser Tyler Durden, mas ao ligar para Marla, uma garota que
conheceu nos grupos-de-apoio e com quem mantém uma relação complicada, recebe a
tão temida resposta “— Tyler Durden — Marla responde. — Seu nome é Tyler Limpa
Bundas Cabeçudo Durden. Você mora na paper Street, 5.123 NE, local que agora
está repleto dos seus pequenos discípulos raspando a própria cabeça e queimando
a pele com soa cáustica. ”
Tanto o conto de Poe quanto o romance
de Palahniuk tratam do duplo interior, aquele cuja gênese fundamenta-se no “eu”.
Nas duas narrativas, desde o início existem indícios de que o “outro” nasce a
partir do próprio protagonista. Em William Wilson, desde o início o narrador
diz advir de uma família de temperamento imaginativo e facilmente impressionável;
e durante toda a narrativa William Wilson
aparece com vestes idênticas às do narrador. Já em Clube da Luta, os indícios
são ainda mais sutis. Há uma frase que percorre todo o livro; diversas vezes, o
narrador diz que “eu sei disso porque Tyler sabe disso”. E em cenas onde o
narrador age, geralmente, de forma excessivamente agressiva, as ações são
justificadas com “É isto que Tyler quer que eu faça. Estas são as palavras de
Tyler saindo da minha boca. Sou a boca de Tyler. Sou as mãos de Tyler”.
Entretanto, apesar de nas duas obras
explorarem essa temática, existem algumas diferenças nas relações travas entre
o “eu” e o “outro”. No conto de Poe, William
Wilson é uma sombra na vida do narrador, nada além de um sussurro. Ele está
em cada lugar que o protagonista vá, é impossível fugir dele e isso atormenta
imensamente o Wilson-narrador. William
Wilson “é a causa de seu desespero, existe apenas para impedi-lo de agir
guiado por seu mau-caráter, restabelecendo o equilíbrio de suas relações com as
outras pessoas. Se Wilson é dotado da mesma capacidade, ele opera efeito
contrário, anulando os atos desse protagonista sem nome” (BENEVIDES, 2007,
pg.2). William Wilson serve para
anular os efeitos da personalidade torpe e viciosa do protagonista e é isso que
os torna tão opostos. “[…]Poe desenha um personagem a partir da contraposição
entre ele e seu contrário, evidenciada pela estratégia narrativa que lança luz
sobre um paradoxo – são iguais física e intelectualmente mas diferem em termos
éticos e morais. ” (BENEVIDES, 2007, pg.5). Em outras palavras, o “outro” no
conto de Poe não é muito mais a expressão de uma consciência do que de uma
dupla personalidade. Apesar de, ao dizer pertencer a uma família imaginativa e
impressionável, o protagonista assumir-se como propenso a distúrbios de dupla
personalidade, a forte relação moral existente entre ele e seu duplo não pode
ser ignorada. William Wilson pode vir
a ser tanto uma dupla personalidade do narrador, quanto a representação de sua consciência.
Em Clube da Luta essa relação é um
pouco diferente. Se o Wilson-narrador se difere moralmente de seu duplo e o
detesta e renega por conta disso, o protagonista de Clube da Luta, por grande
parte da narrativa, deseja ser Tyler. Desde o início, o narrador do livro
demonstra uma vontade de fugir de sua vida “Se eu podia acordar em um lugar
diferente em uma hora diferente, será que eu podia acordar como uma pessoa diferente?
”. Então, em um determinado momento, esse seu desejo de ser outra cria uma nova
personalidade. Tyler surge do desejo do protagonista de ser outra pessoa, Tyler
é tudo o que o protagonista queria ser; e a “insônia” sofrida pelo protagonista
é o gatilho e o meio utilizado para isso. “— Toda vez que você dorme — Tyler diz —, eu
escapo e faço algo louco, bizarro, algo completamente fora de mim”. No romance de Palahniuk o “eu” e seu “duplo”
utilizam o mesmo corpo em horários diferentes. Durante a maior parte da
narrativa Tyler é apresentado como um indivíduo diferente e o número de vezes
que se pensa nele como produto da imaginação do protagonista é diminuto se
comparado à William Wilson. No decorrer do conto de Poe, quando o duplo ainda é
apresentado como uma outra pessoa, há muitos momentos em que a narrativa não
parece lúcida o bastante e, portanto, ocorre a dúvida se William Wilson existe mesmo ou se o narrador está louco. Já em
Clube da Luta, até que o protagonista descubra que o líder do Projeto Desordem e Destruição é ele
mesmo, Tyler é tratado o tempo todo como outro indivíduo.
A partir do momento que o
protagonista descobre que ele e Tyler dividem o mesmo corpo, têm-se a
confirmação total de que o último é uma outra personalidade que está tentando
tomar o controle. “Tyler é a outra personalidade que criei e agora ele está
ameaçando tomar minha vida real”. Nas páginas finais de Clube da Luta temos o
narrador tentando pôr um fim em sua outra personalidade. O embate que há entre
eles não é um embate promovido por ódio e recusa, como o em William Wilson, mas
um embate para decidir qual personalidade tomará o controle total do corpo.
Tanto William Wilson, quanto Clube da
Luta, valem-se da temática do duplo interior, cada uma desenvolvendo a questão
ao seu modo. No conto nós temos um personagem que demonstra uma lucidez duvidosa,
um duplo que causa um verdadeiro tormento e se apresenta como uma espécie de
consciência do narrador e protagonista. No romance temos um narrador que soa
muito mais lúcido que, cansado de sua vida e sua rotina, acaba por desejar ser
uma outra pessoa, desenvolvendo assim uma segunda personalidade que se
descontrola até tentar tomar o controle total de seu duplo. No conto de Poe, o
duplo apresenta-se, então, como uma espécie de consciência moral do
protagonista. Já no romance de Palahniuk, o duplo é a expressão de uma segunda
personalidade, nascida do desejo de ser outra pessoa, do narrador.
Referências
Bibliográficas
BENEVIDES, Ricardo. O outro ou o
mesmo? A representação do duplo em William Wilson. Revista COMUM, v.12, nº 28,
p. 1-16, janeiro/junho. 2007.
PALAHNIUK, Chuck. Clube da Luta. São
Paulo: Leya, 2012. 210 p.
POE,
Edgar Allan. William Wilson.
SANTOS, Adilson dos. Um périplo pelo
território do duplo. Revista Investigações, Londrina, vol.22, nº 1, p. 51-101,
janeiro. 2009.
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