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Resenha: Boku Dake ga Inai Machi


“Todo dia, passa pela minha cabeça ‘Se tivesse feito isso ou aquilo...’
Mas não é realmente um arrependimento.
É apenas uma desculpa que vem à mente e depois some.
Tenho medo de ir fundo em minha própria mente. ”

Boku Dake ga Inai Machi, também conhecido como ERASED e carinhosamente apelidado de Boku Machi, é um mangá seinen roteirizado e desenhado por Kei Sanbe. Uma adaptação em anime foi produzida na temporada de janeiro de 2016 onde a história do mangá foi adaptada, integralmente, em doze episódios.

O enredo de Boku Machi gira em torno de Fujinuma Satoru, um homem de vinte e nove anos e aspirante a mangaká que volta no tempo sempre que uma tragédia acontece, em especial para evita-la. O fenômeno é conhecido como “revival”. À exceção dessa curiosa habilidade, Satoru vive uma vida normal e, até mesmo, monótona. Um certo dia, sua mãe nota a presença de um sequestrador — um assassino em série que cometeu crimes contra colegas de Satoru durante sua infância — e por conta disso acaba sendo assassinada. O incidente desperta o “revival” fazendo com que Satoru retorne dezoito anos no tempo para impedir não apenas o assassinato de sua mãe, como também de seus colegas.

Falar de Boku Machi é um pouco complicado e um terreno espinhoso. O motivo para isso é bem simples: Boku Machi é aquele tipo de anime que soa bom; ele soa tão bom, mas tão bom que você fica esperando o exato momento em que ele vai começar a desandar. O primeiro episódio do anime é absurdamente impactante, quando acaba você continua colado na cadeira se perguntando o que acabou de ver diante dos seus olhos. A palavra que melhor descreveria o primeiro episódio de Boku Machi seria “impactante”. Temos então, um segundo episódio que também é bom. E então temos um terceiro e um quarto.... Têm-se uma sequência de episódios muito bons, até que em um determinado momento ele começa a ficar um pouco mais previsível para, por fim, culminar num final esperado e perfeitamente aceitável, porém exatamente dentro do que foi proposto, nada além disso. No final das contas, Boku Machi foi bom. Não foi espetacular, mas, embora tenha sido o melhor da temporada que integrava, talvez não vá ser o melhor do ano.

Boku Machi é uma série que pode ser observada por vários ângulos diferentes. Analisando-o a partir do enredo, o anime não tem nada de espetacular; na verdade, ele tem muito de vários clichês sobre viagens temporais e assassinatos em série. A história não acaba tratando com muita profundidade nenhum dos dois temas, embora a série seja mesmo cativante. Observando o quesito viagem temporal pode-se dizer que ela peca um pouquinho por verossimilhança. O Satoru tem essa habilidade conhecida como “revival” e não se tem nenhum tipo de explicação concreta para isso. Ele simplesmente tem essa habilidade e pronto, acabou. Porém, apesar da viagem temporal ir um pouco para o lado do “apenas aceita que dói menos”, o próprio Satoru também não sabe muito bem como ou porque possui o “revival”, então isso meio que equilibra as coisas e deixa tudo mais encaixadinho. Quanto à questão mistério/assassinato em série tudo é bem previsível. Desde a metade da narrativa, talvez até mesmo antes disso, já está bem óbvio quem é o culpado. Na primeira metade do enredo temos umas dicas um pouco mais sutis, mas da segunda metade para a frente as coisas começam a ficar bem escancaradas. Não é difícil descobrir quem é o assassino, só basta prestar um pouquinho de atenção. É nessa direção que as coisas começam a assumir um tom de maior previsibilidade e é nessa direção, também, que a série dá suas escorregadas.

Nesse momento será necessário um spoiler, mas é um spoiler muito previsível que fica bem claro logo no final do primeiro episódio, no fundo não afeta nenhuma “grande revelação” que vá acontecer no desenvolvimento da trama. Assim como acontece em dezenas de histórias de mistérios e/ou romances policiais, quando a mãe do Satoru é encontrada morta todo mundo começa a desconfiar do protagonista. Esse é um discurso muito comum e corrente nesse tipo de história, como já dito anteriormente. Outro fato absurdamente comum nesse tipo de história é o seguinte: tudo que o pobre personagem acusado injustamente faz serve para incriminá-lo ainda mais. Portanto, em um determinado momento da narrativa nós temos uma onda de previsibilidade muito grande, é possível ler, exatamente, o que vai acontecer. Isso acaba tirando um pouquinho a graça das coisas. Acontece algo e você pensa “agora vão achar isso e isso e isso”; aí acontece outra coisa e você pensa “agora vai acontecer isso e aquilo” e, de fato, acontece. Embora logo depois ocorra uma mudança e as coisas sejam levadas, novamente, para uma linha com menor previsibilidade o que está feito já não pode ser desfeito ou negado.

Ainda na linha do mistério/assassinato em série temos o culpado, o assassino em série. Como todo vilão de mistério os atos do assassino são motivados por uma causa X, só que a causa X não convence. Na verdade, no anime a tal causa é explicada de uma forma até que meio corrida e embora você a entenda ela não convence muito bem. Nesse momento acho importante abrir o seguinte parênteses: quando se tem um grande vilão numa história, os seus atos são sempre motivados; o autor da história tende e deve explicar o que motivou esses atos. Ninguém é mau porque é mau, isso não existe, é inverossímil. Um bom vilão é motivado. Quando o autor explana na história a motivação do vilão ele não quer convencer você que os atos do vilão são corretos ou quer que você o absolva, não é isso (as vezes pode ser, mas aí já entra num lugar mais complexo), o que autor está fazendo é construir um bom personagem ou pelo menos um personagem razoável. Em suma, para ficar claro, pense numa novela mexicana: as vilãs de novelas mexicanas são ruins porque elas são más simplesmente por serem más. Elas são personagens planas, não esféricas, elas são mal aprofundadas. Okay, agora voltando, a motivação do assassino não é convincente. Ela não tem muito impacto e o expectador ainda fica “É sério que ele matava criancinhas por causa disso? ” Provavelmente, no mangá essa motivação talvez seja melhor explicada, mas no anime o dilema do assassino é meio raso, não conquista, não convence.

Por último, essa motivação nada convincente acaba levando o assassino a ter uma relação Y com o Satoru. Essa relação Y faz com que, uma vez que há um embate entre eles em um determinado momento, ocorra um discurso que te deixe completamente confuso. O expectador entende as falas, até mesmo entende a relação; mas como a motivação do assassino não foi convincente, isso torna essa relação também não convincente e esse diálogo, por consequência, não convence. É meio que um encadeamento de coisas não convincentes. Esse encadeamento acaba por, mais uma vez, tirar um pouco a graça das coisas. É nesse momento que a narrativa dá sua maior escorregada e é isso que define o que todo mundo já sabia: era bom, era bom, era bom, até que deu uma escorregada.
Entretanto, apesar de todos esses clichês, apesar dessas escorregadas, Boku Machi compra as pessoas, como? Bom, primeiramente, os personagens são bons; em segundo lugar, a narrativa trata de um assunto que é capaz de sensibilizar muita gente e que é o grande carro chefe da história.

Uma vez que se vá falar dos personagens é interessante começar pelo próprio Satoru. O protagonista tem vinte e nove anos, uma idade não tão comum para protagonistas de mangá. Entretanto, esse é um elemento e tanto e é o que faz com que o espectador seja conquistado logo no primeiro episódio. Fujinuma Satoru, aos vinte e nove anos, é um fracassado. Obviamente, a palavra é pesada; obviamente também, ele seria um fracassado segundo o olhar da sociedade, não que ele seja isso realmente. Enfim, o que importa é que o protagonista tem vinte e nove anos e não vive a melhor vida do mundo. A vida dele é parada, é monótona e ele é, absurdamente, apático. Existe, em sua mente, uma espécie de borrão relacionado à sua infância e ele é incapaz de ir fundo em sua mente ou se conectar com ele mesmo e seus próprios sentimentos. Resumindo tudo: o Satoru é apático mesmo. Toda essa apatia causa uma espécie de sensibilização, o Satoru cativa porque é apático. Ele cativa porque é monótono, porque é chato, porque é quase melancólico. Todas essas características juntas acabam por comprar o espectador rapidamente, talvez porque todas elas venham temperadas com uma espécie de sinceridade. Porém, Satoru ativa o “revival” e volta dezoito anos no tempo nos dando, agora, um protagonista criança. Entretanto, apesar de ter um corpo infantil ele conserva a memória dos seus vinte e nove anos sendo, portanto, um protagonista duplo: ao mesmo tempo em que é uma criança, Satoru é também um adulto.  Esse “protagonista duplo” torna tudo mais interessante. Para além disso, ele também se desenvolve de uma forma positiva ao longo da trama. A palavra que melhor caracterizaria Satoru seria “cativante” e é esse protagonista cativante o primeiro gancho de Boku Machi.

Outra personagem muito importante é a Sachiko, a mãe de Satoru. Sachiko é observadora, astuta e uma mãe maravilhosa. A relação dela com Satoru também se desenvolve ao longo da trama e é muito fácil amar a Sachiko. Basicamente, ela é essa mãe maravilhosa em oposição à uma outra mãe que deixa muito a desejar.

A turma de amigos do colégio de Satoru também são muito legais. Kenya, Hiroomi, Osamu e Kazu são muito fofos e os dois primeiros acabam se envolvendo bastante com o mistério central da trama. São a parte mais engraçada e bonitinha da história. Crianças são sempre boas personagens.

Há ainda, a Airi, uma colega de trabalho de Satoru que é uma fofa e a única que acredita que ele não é culpado pela morte da mãe. E o professor excessivamente bonzinho, Yashiro.

Em resumo, os personagens da história são bons. São eles que fazem com que, apesar dos pesares, Boku Machi conquiste o público e seja uma história prazerosa de se acompanhar. Porém, ainda falta falar de duas personagens. Essas duas estão diretamente ligadas ao elemento que é o grande carro chefe da narrativa. Como já dito, Sachiko é uma mãe maravilhosa em oposição à uma mãe que deixa muito a desejar; essa pessoa é Hinazuki Akemi, a mãe de Hinazuki Kayo. Ao dizer que Akemi é uma mãe “que deixa muito a desejar” há uma grande generosidade no termo. Akemi abusa, fisicamente, de sua filha; a Kayo apanha regularmente de sua mãe. Esse é carro chefe de Boku Machi.

Antes de mais nada, abuso infantil é algo real e um caso sério, isso ocorre de verdade. Provavelmente por ocorrer de verdade é que esse elemento da trama causa um baita impacto. A palavra que descreve o abuso sofrido por Kayo não é “emocionante”, mas sim, mais uma vez, “impactante’. O que esse elemento causa é “sensibilidade”, mas não é uma emoção de chorar, não. É raiva, é revolta, é desespero. Uma coisa importante em tudo isso, num plano mais geral da história, é que Kayo é uma das vítimas do assassino em série. Ela é a primeira vítima e, assim que é descoberto o abuso que Kayo sofre, é possível perceber que se ela não sofresse abuso talvez não tivesse sido uma vítima. Ela é a vítima mais difícil de se salvar e se manter em segurança porque não está em segurança nunca, nem quando está dentro de sua própria casa! Kayo é a segunda melhor personagem por causa disso; ela é tão cativante quanto Satoru porque você quer protege-la a qualquer custo. E em várias cenas essa é a única coisa que o espectador é capaz de pensar. Muitas vezes você sabe o que vai acontecer, é óbvio, a trama toda já se mostrou óbvia, mas é necessário proteger a Kayo. Existem momentos em que você observa as cenas e o que impera é que, novamente, não vai ser possível proteger a Kayo. O abuso sofrido pela garota é um elemento tão impactante que desvia os olhos do espectador da trama central, dos escorregões, da previsibilidade da trama central... Kayo é preciosa, é uma criança que sofre abuso e ela precisa ser protegida. O abuso que ela sofre é uma das coisas que asseguram a qualidade de Boku Machi. Kayo causa empatia e o tema que a envolve não é tratado de forma leviana.

Ainda como elemento positivo do anime podemos destacar a execução técnica. A animação é boa, de qualidade e a trilha sonora é ótima. Tanto a abertura quanto o encerramento são bons não só no sentido de que as músicas são boas como também porque elas casam perfeitamente com as cenas designadas para a abertura. Fica tudo muito amarradinho, muito bonito. E, vamos combinar, utilizar Re:Re do Asian Kung-Fu Generation é quase apelação.

Num balanço geral, Boku Machi foi um bom anime. Não foi o melhor anime de todos os tempos, mas foi legal de se acompanhar. Apesar de ter alguns (muitos) clichês, de não desenvolver plenamente nenhum dos dois temas centrais e de ter algumas partes bem previsíveis, num todo conseguiu executar de forma adequada o que se propôs a fazer. Tinha potencial para mais, mas não foi uma catástrofe. Com elementos e personagens que cativam e compram o espectador Boku Machi aposta no impacto, seja em suas cenas, seja em sua abertura. Apesar de todos os pesares, Boku Machi poderia mesmo ser definido pela palavra “impactante” e, o saldo final de tudo é um bom entretenimento.