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Resenha: Sangatsu no Lion

“Eu gosto do rio.
Não existem muitas coisas que eu goste...
...mas quando vejo uma grande quantidade de água junta,
eu entro em um transe enquanto minha mente se esvazia.”

          O shogi é um jogo que poderia ser considerado a versão japonesa do xadrez; assim como neste, peças são dispostas em um tabuleiro e os jogadores têm como objetivo impedir que o rei adversário se movimente e, então, derrota-lo. O jogo, muito mais recorrente nas tramas de mangás e livros de literatura japonesa do que um primeiro olhar sugere, é peça central do enredo de Sangatsu no Lion. 

     Não é incomum se deparar com uma história sobre jogadores de futebol, de basquete ou de vôlei, mas Sangatsu conta a história de um jogador de shogi. Kiriyama Rei tem dezessete anos e é um jogador profissional de shogi pertencente ao rank C-1, 5º dan. O garoto reside, sozinho, em uma cidade situada ao longo de um grande rio. Rei tem um passado marcado por momentos recheados de tristeza, para não dizer traumáticos, que o transformaram em um garoto solitário e melancólico. Sangatsu no Lion, adaptado a partir de um mangá de mesmo nome de autoria de Chica Umino, relata o quotidiano de Rei, a maneira como ele lida consigo mesmo, seu passado e suas relações com uma família de três irmãs que possuem um grande número de gatos.

     O anime de Sangatsu, que conta com 22 episódios, foi exibido de outubro de 2016 a março de 2017 e já tem segunda temporada confirmada para outubro desse ano. Um live action que será divido em duas partes também irá ao ar ainda no primeiro semestre de 2017.

         Sangatsu no Lion é um anime que poderia ser facilmente descrito pela palavra “bonito”, embora essa não seja a única qualidade que a série apresenta. A narrativa tem, em seu início, um tom melancólico, mas ao mesmo tempo acolhedor que acaba por envolver completamente o expectador. Assistir Sangatsu é sempre uma boa experiência, quase uma contemplação e você termina o episódio sempre com o coração aquecido. 

     O enredo é construído de uma forma a tornar tudo muito belo e a parte técnica se adequa perfeitamente à proposta da trama. O character design é muito bonito, não deixando a desejar se comparado ao mangá; as cores utilizadas são bem escolhidas e contribuem bastante para transmissão das sensações da cena que se desenrola; a trilha sonora é muito boa. Além de sonoramente agradáveis, as aberturas e os encerramentos casam muito bem com a ideia que o anime transmite e tudo se encaixa; e as cenas das metáforas, onde o Rei se submerge em água e se afoga, demonstrando o quão complicado são seus sentimentos e pensamentos, ou caminha em meio à uma grande quantidade de neve, o que demanda muito esforço... tudo é absurdamente lindo. A execução técnica serve para tornar a experiência do enredo mais completa e mais bela.

    No que diz respeito ao enredo propriamente dito e seu desenvolvimento, tudo anda bem devagarinho, mas com uma evolução constante. Sangatsu tem personagens muito bons: alguns deles são muito carismáticos e nos que falta carisma, sobra malícia. De uma forma ou de outra, a maioria dos personagens consegue causar alguma impressão e, muitas vezes, essa impressão é bem forte. 

           A começar pelo próprio protagonista, Kiriyama Rei, um garoto solitário, melancólico, sem amigos e, obviamente, com vários problemas internos a serem resolvidos. Ele é muito sozinho desde de criança e acabou se envolvendo com o shogi para poder jogar com o pai. Rei se questiona em alguns momentos do porquê continuar jogando shogi; em outros sua cabeça parece um mar de confusão e ele afunda e se afoga dentro de si mesmo. São nessas horas que ocorrem as cenas em que ele submerge nas águas, como se afundasse no mar. É uma imagem muito bonita e muito representativa, que demonstra muito bem a forma com ele se sente.

     Talvez por causa de tudo pelo que o Rei passou, talvez por ele ser tão jovem, talvez pelo jeito tímido dele e pela ideia não tão boa que ele faz de si mesmo, Rei desperta um sentimento de proteção e afeto. Você quer vê-lo bem, você quer vê-lo feliz... E ele evoluí muito entre o primeiro e o último episódio. Rei melhora um pouquinho mais a cada dia, aprendendo mais sobre si, sobre os outros, sobre o que quer fazer... É um protagonista que convence.  Talvez seja por isso, também, que ele desperte a simpatia nas irmãs Kawamoto.

    Apesar de muito sozinho, Rei acaba conhecendo e se aproximando de uma família composta por três irmãs — Akari, Hinata e Momo — e um avô. Kawamoto Akari é a mais velha das irmãs. Ela trabalha no bar da tia e na loja de doces do avô. Além de ser uma mãe para as irmãs mais novas, Akari é absurdamente gentil e atenciosa. É ela quem se aproxima de Rei e o coloca em contato com sua família.

     A irmã do meio é Kawamoto Hinata, mais conhecida como Hina, uma estudante do fundamental II com uma personalidade muito animada. Hina é um pouco barulhenta e até mesmo exagerada, o que faz com que as cenas em que ela aparece sejam muito divertidas e agitadas.

     A terceira irmã é Momo, uma garotinha que ainda frequenta o jardim de infância. Ela é simplesmente tão fofa quanto os gatos de sua casa e a maneira como ela tem carinho e interage com o Rei é muito bonitinha de se ver.

     Entretanto, a família Kawamoto não é a única com a qual Rei está envolvido; outra família presente na vida de Rei são os Kouda, com quem ele viveu por vários anos de sua vida. Masachika é o chefe da família e professor de shogi de Rei. Era amigo do pai de Rei e se interessou pelo garoto quando percebeu que ele possuía talento para o shogi. É muito exigente com seus filhos, Kyouko e Ayumu, no que concerne ao shogi; por causa disso sua relação familiar é bastante abalada.

            Kyouko é a filha mais velha da família Kouda e possuí uma malícia no olhar e nas palavras capazes de causar uma grande impressão. Impressão essa que é agravada por conta da sua beleza. Kyouko é, num primeiro olhar, uma personagem muito forte, mas ela tem muitos problemas, sendo um deles o relacionamento com o pai. Ela tem uma relação um pouco confusa com Rei, a quem deveria considerar um irmão mais novo, por ele ser melhor no shogi e ter conseguido se tornar um profissional, ganhando assim o respeito do pai de Kyouko. 

     Além das famílias Kawamoto e Kouda, o elenco de Sangatsu no Lion conta, ainda, com os jogadores de shogi. Destes, dois merecem destaque: Harunobu Nikaido e Kai Shimada. Nikaido é um garoto que joga contra Rei nas competições de shogi desde que ambos eram pequenos. Ele se autodeclara “melhor amigo” de Rei. Apesar de ser muito barulhento, efusivo e exagerado, Nikaido é deveras um bom companheiro para Rei e se preocupa de verdade com o garoto. Ele também tem um lado um pouco convencido demais que acaba por desembocar em vários escapes cômicos.

     Kai Shimada, por sua vez, é um homem educado que aparenta ser bem calmo. Jogador habilidoso, ele promove oficias que ajudam jogadores a melhorar no shogi e trabalhar seus pontos fracos. É muito admirado por Nikaido e, apesar de no início parecer ser só mais um dos jogadores, Shimada se mostra um grande personagem. 

      Esses personagens e todos os outros contribuem para que Sangatsu no Lion seja uma história bonita e aquecedora. Todo o conjunto da obra é muito bonito, muito poético. O trabalho da obra é feito de forma muito esmerada, envolvendo, tocando e aquecendo o coração do expectador. A evolução do Rei ao longo da narrativa e a forma como ele se relaciona com o mundo é algo muito interessante de se acompanhar. Você se apega ao protagonista e seus companheiros, se envolve e se diverte com eles. 

    Sangatsu no Lion foi um dos animes mais prazerosos de se acompanhar das últimas temporadas. Capaz de fisgar o expectador, a cada episódio você se vê mais envolvido no universo de Sangatsu que mistura doses de humor com momentos de reflexão mais sérias. Assim como Rei submerge nas águas de suas emoções e pensamentos, o expectador afunda-se nas águas da narrativa de Sangatsu, de onde observa o desenrolar do cotidiano do protagonista, saindo delas de alma lavada e coração aquecido.



Resenha: E Depois

“Até então, ele se considerava um perfeito cavalheiro, cauteloso e pacífico, que detestava atitudes extremadas, incapaz de se expor ao perigo e que odiava desafios. 
E, a despeito de nunca ter praticado um ato covarde, sua consciência não o deixava negar que ele era, de fato, ignavo. ”

   E Depois (Sorekara, no título original em japonês) é considerado o primeiro romance psicológico de Natsume Souseki, estilo que marcará seus últimos trabalhos, onde há destaque para a construção da interioridade dos personagens. O universo do romance gira em torno do protagonista, Daisuke Nagai e a visão que tem de mundo. Daisuke é um jovem de 30 anos que não trabalha e nem vê razão para isso. É sustento pelo pai, que não se incomoda com a ociosidade do filho, já que dinheiro não é problema. Entretanto, o pai exige que Nagai se case por uma questão de valores sociais e interesses para negócios. Essa situação é uma ofensa para o filho, contestador dos valores morais vigentes e que busca afirmar a importância do individualismo. 

    Daisuke é um personagem sensível, inteligente, frequentador das altas rodas, vaidoso, apreciador das artes e das gueixas. Tem uma visão crítica de tudo que o cerca, mas está longe de ser um rebelde padrão, muito menos sem causa. São muitas as causas do protagonista, como revelam suas digressões ao longo do livro.

    Historicamente falando, o romance reflete as transformações provocadas pela restauração imperial Meiji, iniciada em 1867. Durante este período, o Japão era um país periférico que buscava igualar-se às grandes potências. Aos olhos de Daisuke, tal desejo resulta em uma nação preocupada em esconder suas mazelas, ainda que sob uma inclinação de abertura para o ocidente. 

      Daisuke carrega um incômodo numa vida repleta de facilidades, uma vivacidade colocada em dúvida por sua hipocondria. O protagonista trava seus embates muito mais com sua interioridade do que com o mundo. Suas contestações poderiam até passar desapercebidas, se não fosse o fato de ele recusar todas suas pretendentes. O protagonista segue enrolando a família, dando sempre uma desculpa diferente para não se casar, até que uma situação o coloca contra a parede: Daisuke se apaixona pela esposa de seu melhor amigo. Entretanto, em E Depois o amor não é motivo para sentimentalismos, mas combustível para um homem decidido a romper padrões.

    Olhando com olhos modernos e ocidentais, é difícil lidar com algumas questões do Daisuke, como, por exemplo, o total ócio no qual o protagonista vive. Durante grande parte de sua vida, ser totalmente dependente do pai não o atrapalhava em nada, entretanto, no que diz respeito à Michiyo, mulher pela qual se apaixona, talvez as coisas fossem mais facilmente resolvíveis para ele caso pudesse sustenta-se sozinho. Entretanto, observando as situações que Daisuke enfrenta através da ótica do protagonista, ele não está de todo incorreto; na verdade, suas convicções e motivos para viver da forma que vive fazem bastante sentido.

       E Depois é o segundo livro da trilogia de Natsume Souseki, na qual os protagonistas e as histórias não são os mesmos, mas as temáticas relacionam-se entre si. Se comparado ao primeiro volume, Sanshiro, E Depois é um romance mais denso, o que o torna um pouco menos palatável. A obra também possuí um final absurdamente impactante que parece até mesmo destoar levemente do clima geral do livro, tornando a experiência de leitura ainda melhor. 

    Por ser uma obra mais densa os momentos humorísticos se tornam mais escassos e os toques de leveza do romance acabam por ficar nas mãos de Umeko, cunhada de Daisuke, e Kadono um estudante que mora com o protagonista. Já, no que diz respeito à relação de Daisuke com Michiyo as coisas não ficam apenas no plano do sentimentalismo, mas se desdobram em atitudes e decisões difíceis de serem tomadas. Outras relações interessantes de serem observadas são as de Daisuke e seu pai, em que há claramente um confronto de valores e modos de ver o mundo, e Michiyo e seu esposo, Hiraoka.

    E Depois é mais provocação do que conclusão, desde seu título que sugere uma reflexão sobre o presente, até todo o desenvolvimento da obra. Um romance onde o leitor mergulha na mente de um herói às avessas que o fará pensar e tentar compreender sua forma de viver e enxergar o mundo.


“O noren da tabacaria era vermelho. A faixa de liquidação também era vermelha. 
Os postes de eletricidade eram vermelhos. 
As placas pintadas de vermelho continuavam a surgir uma após a outra. 
Por fim, o mundo todo se tingiu de vermelho. 
E, tendo a mente de Daisuke no centro, o mundo girava ao redor expelindo labaredas. ”