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O desejo da escória - Kuzu no Honkai (resenha)

“Amor sem esperança
Amor doloroso
Amor não correspondido.
Eles são mesmo tão belos assim?
Eu acho que não.
Estamos namorando, mas...
Somos substitutos de outra pessoa um do outro. ”

     As relações humanas são, inegavelmente, um terreno espinhoso. A complexidade das emoções, sentimentos e da psique das pessoas é um assunto sempre complicado de ser tratado. Dentre os sentimentos humanos, o mais discutido, por assim dizer, seja na dita vida real, seja na ficção é, sem dúvidas, o amor; mais especificamente, o amor romântico. Livros, tratados, ensaios, teorias, filosofias, definições... há uma busca incessante para tentar entender melhor o que é, afinal, o tal do amor romântico e quais seus efeitos sobre as pessoas. Há quem diga, inclusive, que toda vez que ouvimos a palavra “amor” automaticamente pensamos no “amor romântico” e que temos a tendência de dar prioridade a ele em detrimento aos demais tipos de amor. Essa é uma afirmação que pode ser contestada, embora não seja de todo errônea. 

       Dentre algumas das teorias sobre o amor romântico têm-se, por exemplo, o Amor do Romantismo no qual está contido a supervalorização do ser amado, único capaz de trazer toda a felicidade e completude ao apaixonado; nele, há ainda o conceito de Amor Reserva, onde a amada não pode ser maculada pela realização do amor através do contato físico. Entretanto, apesar do Romantismo ser um movimento do século XIX, o conceito de amor romântico das obras da época é muito semelhante ao conceito de amor das poesias provençais e das cantigas de amor do Trovadorismo.

     Em oposição completa ao Amor do Romantismo, haveria, então, uma outra teoria do Amor Contemporâneo, no qual há a supervalorização do “eu” em relação ao outro, tratando o suposto ser amado como uma espécie de mercadoria e descartando-o quando este não serve mais; ou seja, uma pessoa X só se relaciona com uma pessoa Y até o momento em que esta pessoa Y atende suas necessidades, a partir do momento que a pessoa Y não é mais “útil” para a pessoa X esta o descarta e troca por uma pessoa Z.

     Como uma espécie de equilíbrio entre essas duas teorias, ou modos de amar, haveria o que se pode chamar de Saúde Mental: quando dois indivíduos em um relacionamento reconhecem a si mesmos e ao outro como indivíduos dotados de defeitos, qualidades e necessidades, não depositando no parceiro toda a responsabilidade de fazer ao outro feliz e construindo juntos o relacionamento.

     Juntamente com os conceitos de amor há também, uma vez que a afeição não seja correspondida, o conceito de melancolia. Este é um fator recorrente em algumas obras do Romantismo, por exemplo. Os conceitos que temos de amor, correspondidos ou não, são na maioria das vezes herdeiros, de alguma forma, do Romantismo. Em Kuzu no Honkai, provavelmente não serão encontrados tantos elementos do Amor do Romantismo, entretanto, estão presentes na obra dois conceitos que se relacionam com as teorias sobre o amor: amor não correspondido e melancolia.

        Adaptado a partir de um mangá de autoria de Mengo Yokoyari, Kuzu no Honkai tem como protagonistas Yasuraoka Hanabi e Awaya Mugi, dois adolescentes de dezessete anos que parecem ser o casal ideal. Ambos são populares e parecem se encaixar muito bem juntos. Entretanto, o que as outras pessoas não sabem é que tanto Hanabi, quanto Mugi são secretamente apaixonados por outras pessoas e só estão juntos para acalmar sua solidão. Mugi é apaixonado por Minagawa Akane, a jovem professora de música que costumava ser sua tutora; Hanabi, por sua vez, é apaixonada por Narumi Kanai, o professor de literatura a quem conhece desde criança. Mugi e Hanabi encontram um no outro um lugar onde podem sofrer por seus amores não correspondidos e consolam-se compartilhando uma intimidade física conduzida pela solidão. 

     Existem algumas coisas que devem ser observadas assim que se põe os olhos em Kuzu no Honkai: primeiro, Hanabi e Mugi se relacionam fisicamente para acalmar sua solidão e encontrarem consolo. Em outras palavras mais diretas, eles se tocam e se acariciam mutuamente enquanto pensam em seus amados. Sim, enquanto se beijam projetam um no outro a imagem daqueles por quem são apaixonados, chegando a chamar pelo nome dessas pessoas. A segunda coisa a se notar é que Kuzu no Honkai significa Desejo da Escória e isso é algo importante e que deve ser mantido em mente por conta do desenvolvimento que a história terá.

O início da narrativa é um tanto quanto apreensivo; quando se tem uma temática dessas, uma sinopse dessas, começar a acompanhar a obra é sempre um ato de pisar em ovos. Logo de cara, você se vê imerso numa atmosfera de grande melancolia, mas não é uma melancolia aquecedora, é uma melancolia dolorosa. Entretanto, nessa melancolia dolorosa há muita beleza. Essa sensação acontece tanto no anime quanto no mangá. Inclusive, a adaptação é muito fiel; todas as coisas que acontecem no anime também acontecem no mangá, a única diferença é que nos quadrinhos as divagações e reflexões dos personagens são mais acentuadas. O anime acaba focando mais nas ações, enquanto o mangá dá um espaço maior para o desenvolvimento das emoções e pensamentos dos personagens. Por causa disso, algumas coisas acabam sendo mais impactantes no mangá. 

     Falando mais especificamente do anime, se por um lado são priorizadas as ações, a parte técnica ajuda muito a lidar com as sensações e os sentimentos envolvidos. As cores, os ângulos, os focos, até mesmo os cortes de cena.... Tudo ajuda a construir a atmosfera de melancolia dolorosa com o qual você se acostuma e se vê imerso. Não é reconfortante, mas é muito bonito e agradável não só como narrativa, mas também como mídia visual. A trilha sonora também é muito bem escolhida, desde as músicas de fundo das cenas até a abertura e o encerramento, também muito bonitos e cujas letras das músicas se encaixam perfeitamente com os personagens e o tipo de relações nas quais eles estão envolvidos. 

    Kuzu no Honkai tem essa atmosfera melancólica, dolorosa e bela que, em alguns momentos pode até se tornar aquecedora. A história também é capaz de te refazer refletir sobre algumas questões, nem que seja apenas com relação à narrativa, já que o enredo não fica apenas no plano do amor não correspondido. Apesar de, obviamente, amor não correspondido ser um dos cernes de Kuzu no Honkai, conforme a narrativa se desenvolve entra em cena um outro fator: a naturalização das ações humanas. 

      Algumas vezes, alguns escritores, tratam de assuntos polêmicos ou perversos de forma naturalizada. Para mostrar o quão cruel aquela atitude, os autores fazem com que a atitude, normalmente condenada pela sociedade ou antiética, seja aceita por um personagem, um grupo de personagens ou simplesmente não seja grandemente relevante ou problematizada no enredo da obra. Isso acontece um pouco nas Narrativas Libertinas, onde o protagonista da história realiza um grande número de ações imorais ou ilegais sem nunca ser pego ou sentir culpa. E também aparece em alguns contos de Machado de Assis, como O Caso da Vara, por exemplo. Kuzu no Honkai está mais para a naturalização da violência de O Caso da Vara do que para as Narrativas Libertinas.

O que acontece em Kuzu no Honkai é o seguinte: Lembra-se que o título da obra é Desejo da Escória? Então, por causa de seus amores não correspondidos e pelas relações que têm com esses amores, os personagens fazem muita bobagem. Assistir o anime é um grande exercício porque não existe, de fato, um vilão na história. Todos os personagens são egoístas, só pensam neles mesmo e machucam a si mesmos e aos outros o tempo todo. O que está em questão não é se as atitudes dos personagens são certas ou erradas, mas sim o que as pessoas são capazes de fazer por amor, obsessão, desespero, solidão e outros tipos de sentimentos. Obviamente, você enquanto expectador não vai gostar de todos os personagens — talvez você não goste de nenhum — nem precisa apoiar as decisões deles — você não vai e não deve apoiá-las —, mas a questão é que tudo é naturalizado. A partir de um determinado momento, tudo começa a depender da perspectiva do próprio expectador. Todos são culpados, todos fizeram coisas erradas e se alguém é pior ou não, aí é você quem decide. 

      Para esclarecer um pouco mais essa questão, é necessário falar um pouco sobre os personagens mais relevantes. Infelizmente, é impossível falar de Kuzu no Honkai sem dar spoiler, portanto, se você quiser parar por aqui, sinta-se à vontade.

Comecemos pela protagonista, Yasuraoka Hanabi, a tola. Apaixonada pelo professor Kanai, amigo de sua família que a considera uma irmã mais nova, Hanabi se vê em uma relação física com Mugi para aliviar sua solidão. Melancólica e solitária, ela quer ser tocada, quer consolo para sua tristeza por saber que nunca terá a menor chance com Kanai. Apesar de parecer, inicialmente, uma coitada que só sofre, em um determinado momento da narrativa ela também começa a fazer bobagem — como se já não fosse bobagem o bastante “se agarrar” com Mugi enquanto pensa em Kanai. Ao descobrir a verdadeira personalidade de Akane, Hanabi resolve tentar vencê-la em seu próprio jogo, embora não tenha a menor vocação para isso. A uma certa altura da narrativa ela admite ter medo da solidão e se sentir vazia quando não está sendo tocada; Hanabi é egoísta e age por impulso, o que a leva a se envolver com sua melhor amiga, usando-a tal qual usa Mugi. 

      Awaya Mugi, o malicioso. Há dentro de Mugi uma espécie de perversidade que vai se mostrando lentamente no desenvolver da narrativa. Assim como os demais personagens ele tem a marca do egoísmo, mas não é só isso, ele tem uma espécie de quase maldade. De uma certa forma, Mugi não se importa de usar as pessoas ou mesmo os sentimentos delas por ele, mas acaba nem sempre concluindo suas ações. Sua relação com Hanabi não é a primeira a soar torta e nada saudável em sua vida. Entretanto, ele ama Akane de uma forma as vezes quase ingênua. 

Minagawa Akane, a perversa. Akane é, com certeza, uma das personagens mais odiadas de Kuzu no Honkai, embora há quem diga que ela é a única honesta. Bom, independente de gostar dela ou não, é inegável que sua personalidade é muito bem construída, talvez uma das mais bem construídas do anime. Akane é uma mulher linda e confiante, de aparência pura e doce, capaz de ter o homem que quiser. Porém, apesar de confiar muito bem em seu próprio taco e ter certeza que é capaz de deixar qualquer homem a seus pés, Akane não tem uma autoestima tão alta assim. Sendo mais exata, Akane não ama a si mesma.

      Minagawa só é capaz de se definir através do desejo dos homens e da inveja das outras mulheres. A prova de que ela é bela e desejável está no fato de que um homem, desejado por outra mulher, a deseja. Resumindo: por mais sem graça que um homem possa parecer a seus olhos, ele se torna imediatamente interessante para ela a partir do momento em que Akane percebe que outra mulher o ama. Ela precisa sentir que está tirando algo de alguém para sentir que possuí, de fato, algum valor.  Akane gosta de receber a fúria e a inveja das outras mulheres, ela gosta de fazê-las chorar por terem sido preteridas. Minagawa Akane é egoísta, não se importa com ninguém além de si mesma e só sabe ser assim. Entretanto, justamente por ser desse jeito é que ela a personagem que nunca decepciona. Ela é previsível, você sempre sabe o que ela vai fazer. Portanto, não foi surpresa nenhuma seu envolvimento com Kanai.

      Narumi Kanai, o adepto ao NTR. Kanai é um homem gentil e tímido, um jovem professor de literatura. Ele se apaixona à primeira vista por Akane e não sabe muito bem como se declarar para ela. Apesar de ser o personagem mais sem graça, surpreende muito uma vez que conhece a conduta de Akane a aceitando sem pensar duas vezes. Mesmo quando ela diz que irá traí-lo, Kanai simplesmente não se importa. Algo meio inesperado partindo da primeira imagem que se tem do personagem. 

Para tornar a narrativa ainda mais complicada, fora os quatro primeiros envolvidos existem outras duas personagens. Ebato Sanae, a desesperada. Melhor amiga de Hanabi, Ecchan é a definição e tradução da palavra desespero. Apaixonada por Hanabi, ao perceber que a amada não gosta de Mugi, Ecchan se voluntaria para ser a substituta que Hanabi precisa. Apesar de relutar, Hanabi aceita se relacionar com Ecchan e daí para frente Ebato vai ladeira à baixo. Ecchan prefere ter uma relação tóxica e doentia com Hanabi a não ter relação nenhuma. Ela se nega a deixar Hanabi ir, se nega a cortar relações, não importando o fato de Hanabi amá-la ou não. Sanae entra em uma espiral de desespero e começar a ter atitudes cuja palavra impulsiva não é capaz de descrever. Mesmo assim, apesar de amar Hanabi, as portas do coração de Ecchan estão sempre fechadas e no fim das contas ela também está sempre sozinha. 

         A última pessoa envolvida em todo esse bolo de melancolia e dor é Kamomebata Noriko, a coitada. Apesar de ter uma conotação meio forte, “coitada” é a palavra que mais descreveria Noriko, juntamente com “boba”. A garota que prefere ser chamada de Moka é amiga de infância de Mugi e apaixonada por ele há muito tempo. Muito bonita e fofa, Moka tenta viver uma espécie de conto de fadas no qual Mugi não está nem um pouco interessado em ser o príncipe. É uma personagem irritante, mas é uma das que faz menos bobagem ao longo da história. Moka é vítima dos outros e de si mesma. Seu amor por Mugi a faz deixar de lado suas convicções e as coisas que deseja para si mesma, ela sofre por saber que ele é incapaz de amá-la. Moka é importante para Mugi, por isso ele reluta em se envolver com ela, entretanto, se não pode tê-lo, ser importante de nada vale para ela. 

     Esses seis personagens se veem envoltos em uma atmosfera melancólica e dolorosa, na qual eles sofrem cada vez mais machucando uns aos outros e a si mesmos, porém, toda essa melancolia dolorosa é absurdamente linda. Kuzu no Honkai é poesia, não só nos momentos dolorosos, mas principalmente nos momentos em que a melancolia se torna tépida. Além de execução técnica, a obra tem um clima agradável, por mais impossível que isso parecer. É uma narrativa interessante de se acompanhar, que acaba te fazendo refletir sobre algumas questões e também pode te fazer sentir muita raiva dos personagens. A questão em Kuzu não é ser bom ou ruim, é só ser, só agir, fazer qualquer coisa, por pior que essa atitude seja, e tudo acaba sendo relativizado já que todo mundo é errado mesmo.

       Acompanhar Kuzu no Honkai é um exercício: lembrar que ninguém é um vilão, sentir raiva dos personagens que você não gosta, então sentir raiva dos personagens que gosta porque eles também estão fazendo bobagem.... É ficar imerso numa melancolia dotada de muito sofrimento, que acaba se desdobrando em mais sofrimento, até se tornar uma atmosfera tépida. No final de tudo, você acaba sentindo uma espécie de tristeza aquecedora quase esperançosa. Kuzu no Honkai é uma daquelas obras que faz com que seja possível afirmar que existe beleza no choro, na dor, no desespero e na melancolia.
“Eu não sei como é beijar alguém que eu amo. ”


8 comentários:

  1. Ah, um dos meus animes favoritos até agora! Sofri do início ao fim, ao mesmo tempo que me apegava a cada um dos personagens... É poesia pura, uma coisa até "gostosa" se se assistir (amo melancolia e drama, então pra mim foi maravilhoso de assistir). Ótima resenha.

    beijos! ♥

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    1. Menina, se apegar aos personagens de Kuzu é um erro, causa muita dor. Não vou negar que gostei bastante da Ebato e da Hanabi, mas quis matá-las em vários momentos também. Kuzu foi um dos meus animes favoritos da temporada passada.

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  2. Hey, estou ansioso esperando por novos posts.
    Parabéns pelo blog e pela maneira bem escrita dele. Venho o acompanhando por um tempo, sempre usando como referência para assistir algum novo anime (da maneira que você fala sobre eles fica difícil não ficar interessado).
    Você aceitaria sugestões de resenhas?

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    1. Anon, que bom saber que alguém acompanha o blog. Isso me deixa imensamente feliz. Muito obrigada pelo elogio também, eu tento melhorar cada dia mais (no começo era horrível haha).

      Fico feliz que minha forma de falar sobre as obras te deixe interessado nelas. Aqui é um estilo bem faça você mesmo, fico contente quando alguém gosta.

      Eu aceito sugestões sim, eu só não garanto uma data para postar a resenha porque a minha vida anda meio corrida.

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  3. Estou vendo o anime e, pesquisando um pouco mais (estou no quarto episódio), me deparo com essa resenha excelente. Parabéns pelo blog e pela forma com a qual a postagem foi conduzida. Estou curtindo ver Kuzu no Honkai e quero ver onde essa história vai dar

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    1. Muito obrigada, Victória. Eu gosto muito de Kuzu no Honkai e as análises possíveis de fazer a partir desses personagens e trama. Espero que você tenha apreciado assistir o anime.

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  4. Respostas
    1. Obrigada, Laura. Me deixa muito contente quando alguém gosta de um texto meu.

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