Menu

O futuro cyberpunk de Gibson - A trilogia do Sprawl (resenha)

Arte de Nathan Anderson


    “O céu sobre o porto tinha cor de televisão num canal fora do ar”. Esta é a frase que William Gibson utiliza para dar o pontapé inicial em Neuromancer, primeiro livro de sua trilogia. Conhecidos como Trilogia do Sprawl, os livros de Gibson são pertencentes ao gênero cyberpunk, um dos subgêneros da ficção científica, sendo romances formadores do gênero como um todo. Neuromancer e suas sequências, Count Zero e Mona Lisa Overdrive, todos publicados nos anos oitenta, introduziram conceitos novos para a época, como inteligências artificiais avançadas e um ciberespaço quase “físico”, conceitos estes mais tarde explorados nas obras Ghost in the Shell e Matrix.

        O gênero cyberpunk é conhecido por ter como seu enfoque o contraste entre alta tecnologia e uma baixa qualidade de vida, misturando ciência avançada — tecnologias de informação e cibernética, por exemplo — com algum grau de desintegração ou mudança radical na ordem social. O indivíduo cyberpunk é um “pichador virtual” que usa seu conhecimento para realizar protestos contra o sistema vigente das grandes corporações; através de um vandalismo depreciativo, infringe prejuízos a essas corporações, embora não recebam nenhum ganho pessoal com tais atos.

      O mundo retratado no universo cyberpunk é sinistro e sombrio, as empresas multinacionais substituíram o Estado como centros de poder e computadores dominam todos os menores aspectos da vida humana cotidiana. Neste cenário, ocorrem os conflitos entre hackers, inteligências artificiais e megacorporações, revelando as entranhas da corporocracia.

       É nessa ambientação que as tramas da Trilogia do Sprawl se desenvolvem. O primeiro livro, Neuromancer, conta a história de Case um ex-cowboy (como são chamados os hackers na trilogia) que foi impossibilitado de exercer sua profissão após tentar roubar um de seus contratantes. Ao descobrirem a tentativa de Case, seus contratantes o envenenam com uma microtoxina, danificando seu sistema neural e tornando-o incapaz de se conectar à matrix. 

      Case, então, procura as clínicas clandestinas de Chiba City e gasta todo seu dinheiro em exames, sem conseguir encontrar uma cura. No início da narrativa, Case é, portanto, um drogado, sem dinheiro e desempregado, residente de um hotel-caixão de Chiba City. É nesta situação que ele se encontra com Molly, uma espécie de samurai das ruas, que diz haver uma forma de resolver o problema de Case com a microtoxina. Molly foi recrutada por Armitage, um homem envolto em mistério, responsável por financiar a operação que devolve a habilidade perdida de Case. Agora, Case e Molly devem realizar uma missão para Armitage, empreitada que se revela sendo muito maior e mais complexa do que poderiam esperar.

     Neuromancer é, assim como seus companheiros de trilogia, um romance em camadas. Ao longo de seu desenrolar, várias informações vão sendo descobertas e novas questões vão sendo adicionais à equação inicial, tornando tudo muito maior do que parece em um primeiro olhar. O livro é dividido em cinco partes, compostas de capítulos, na maioria das vezes curtos, apresentados através de cenas também, na maioria das vezes, de curta duração. O romance se apresenta, então, quase que como uma espécie de quebra-cabeças ou quase uma colagem, onde um pedaço se conecta a outro para criar algo maior ao fim de tudo.

     O livro também equilibra cenas mais “calmas”, com um tom quase cotidiano, com momentos de ação protagonizados tanto por Molly em suas operações no mundo normal quanto por Case em suas incursões à matrix. Além disso, todo o mistério que ronda Armitage e a própria missão que precisam desempenhar servem para incutir no leitor uma vontade muito grande de entender melhor todo aquele universo e descobrir, afinal, o que está por trás de tudo.

Arte da adaptação cinematográfica
de Neuromancer abandonada
    O carisma da dupla Case e Molly também é responsável pela constituição da obra em si. O protagonista é um dos mais simples personagens de toda a trilogia, um cara bem ordinário, por assim dizer; tão imerso na matrix, Case a vê até em seus sonhos, mesmo quando havia perdido sua habilidade de se conectar ao ciberespaço. Quando enfim é curado, se vê arrastado para dentro de algo muito maior do que ele mesmo. Neuromancer é o único livro da trilogia a possuir um único foco narrativo que acompanha Case o tempo todo. É muito interessante ver a descrição das coisas através desse homem ordinário, principalmente a forma como ele descreve as ruas de Chiba pelas quais se esgueira: dá a imagem de um local muito sujo e até mesmo decadente, porém com várias luzes de led para te lembrar que o futuro está bem ali diante dos seus olhos.

     Molly, por sua vez, com suas lentes no lugar dos olhos, é uma mulher muito forte. Ela seria um pouco arisca, mas é muito imponente e decidida, além de muito esperta e poderosa. É uma personagem muito forte, muito instigante. Juntos, ela e Case são a dupla perfeita: ele faz o trabalho dentro da matrix, ela deixa o caminho limpo no mundo normal.

     O livro é ainda composto de momentos muito emocionantes e possuí alguns cliffhangers bem interessantes, como os existentes no final dos capítulos um, sete e nove. Embora a sequência de acontecimentos que preceda a conclusão do livro seja um tanto confusa, os momentos finais são muito emocionantes, deixando o leitor ávido para saber como toda aquela jornada termina. Graças a isso, e também por ser a história que inicia a trilogia e apresenta este universo, talvez Neuromancer seja o livro mais impactante dos três.

       Os acontecimentos da sequência, Count Zero, se dão sete após os eventos narrados em Neuromancer. Dessa vez, ao invés da história se dividir, primeiramente, em várias partes, ela está dividida apenas em capítulos; em compensação, Count Zero não possuí apenas um foco narrativo, mas sim três. Os capítulos se revezam em mostrar a perspectiva dos personagens Turner, Marly e Bob, que iniciam suas narrativas estando cada um em um lugar distinto. A princípio, o livro possuí uma ordem de apresentação dos capítulos: Turner → Marly → Bob, porém, a partir do capítulo nove tal ordem é deixada de lado e não é mais previsível saber sob qual perspectiva o próximo capítulo será contado. 

    Ter três focos narrativos distintos é uma ideia muito interessante, pois acentua a sensação de quebra-cabeça e deixa o leitor ansioso por descobrir quando, enfim, aquelas narrativas vão se encaixar e formar uma única história completa. Por outro lado, pode tornar algumas partes da história menos interessantes, caso um dos focos narrativos não seja tão atrativo ao leitor. No caso de Count Zero, os focos narrativos distintos acabam servindo para instigar mais o leitor a seguir firme na narrativa, ansioso pelo momento que todos os fatos narrados se unirão revelando a trama completa do livro.

    O foco narrativo de Turner começa apresentando sua ocupação e, ao final do primeiro capítulo, durante um período de calmaria, o personagem é recrutado para uma nova missão: a transferência de um renomado profissional de uma empresa para outra. O segundo capítulo do livro apresenta a perspectiva de Marly, uma garota que trabalhava numa galeria de arte, mas foi demitida após seu namorado envolve-la em um esquema de falsificação. Após ficar desempregada, Marly recebe uma proposta de trabalho de um homem rico o bastante para fazer frente à uma corporação. O desejo de seu contratante? Que ela descubra o artista que produziu uma misteriosa caixa.

    O último foco narrativo é aquele que segue Bob, um adolescente que vive no subúrbio e está se iniciando na arte de ser um cowboy do ciberespaço. Durante uma incursão a pedido de um contratante, Bob tem uma estranha visão na matrix, cujo sentido ele não compreende totalmente, mas sabe que não é algo tão simples.

    Dos três focos narrativos, o mais emocionante costuma ser o de Bob. Além do personagem ser super carismático, é nele que se recebe informações sobre a matrix e sobre as coisas que a habitam, coisas que apareceram misteriosamente e que antes não existiam. A forma como os três focos vão se ligando, fato a fato, até formar um enredo completo — além do desdobramento dos acontecimentos onde está Turner, envolvendo Angie, a filha do homem que ele devia transferir de uma empresa para outra, mostrando que na Trilogia do Sprawl nada nunca é apenas o que é demonstrado logo de primeira — é muito prazerosa de se acompanhar. Quando tudo, enfim, se liga e os momentos que precedem essa compreensão deixam o leitor ansioso, mas uma ansiedade boa, composta de uma ânsia de saber onde aquele rio irá desaguar.

       O terceiro e último livro da trilogia, Mona Lisa Overdrive, tem seus acontecimentos situados oito anos após os fatos ocorridos em Count Zero e quinze após os acontecimentos de Neuromancer. Dessa vez, Gibson não trabalha com três focos narrativos, mas sim pontos de vista de quatro personagens distintos: Kumiko, Slick Henry, Angie e Mona Lisa. 

     Kumiko é uma jovem japonesa, filha de um dos chefes da Yakuza, que é mandada para Londres a fim de permanecer em segurança enquanto seu pai resolve seus negócios. Em Londres ela conhece Molly, a samurai das ruas de Neuromancer, que agora atua sob o nome de Sally Shears para ocultar sua identidade de terceiros e que decide proteger Kumiko.

    Slick Henry, por sua vez, é um artista recluso que vive em um lugar chamado Fábrica. Ex-ladrão de carros condenado, Slick passa seus dias construindo grandes esculturas robóticas e seu cotidiano é perturbado quando um antigo conhecido aparece na Fábrica pedindo para que ele esconda um homem desacordado em uma maca e uma biomédica.

    Angie tornou-se uma estrela de Simstim após os acontecimentos de Count Zero. Ela inicia Mona Lisa Overdrive em Malibu após passar por uma cirurgia de desintoxicação de uma droga. Já Mona é uma prostitua adolescente possuidora uma considerável semelhança física com Angie, ela é contratada por indivíduos desconhecidos para um trabalho cujos detalhes também desconhece.

Ilustração de Josan Gonzalez
     Em Mona Lisa Overdrive, as histórias de Kumiko, Slick Henry e Mona se entrelaçam para formar o enredo da narrativa, amarrando os acontecimentos dos três livros e deixando, ao terminar, um grande gosto de “quero mais”. Dessa vez, se mostra mais importante reunir certos personagens em um mesmo lugar, ligando os personagens em si, do que os acontecimentos de fato. Assim como em Count Zero, os focos narrativos seguem uma ordem até o capítulo nove e partir daí não se sabe mais qual parte da história será apresentada. Entretanto, o grosso do enredo já é compreensível mais ou menos na metade do livro, sendo necessário unir aqueles personagens todos em um mesmo lugar para que as engrenagens possam rodar e concluir a história. 

    A segunda metade do livro, onde o leitor espera desesperadamente o encontro dos personagens que precisam ser colocados em um mesmo espaço, é muito instigante. Além disso, de todos os três livros, esse é o que possuí maior contribuição de personagens femininas, em número, todas muito mais fortes do que suas personalidades nos levariam a prever, com exceção de Molly, nossa já velha conhecida.

     Falando como um todo, a Trilogia do Sprawl é uma série muito gostosa de se acompanhar. Cada livro tem suas próprias peculiaridades, por vezes parecendo não possuir tantas ligações, mas juntos eles formam uma única narrativa onde os fatos e acontecimentos se encaixam. No que diz respeito à compreensão, a escrita em si não é complicada, mas o autor verdadeiramente joga no leitor vários conceitos não introduzidos, principalmente em Neuromancer, e cabe a ele “se virar” para compreender como aquilo funciona e se aplica na narrativa.

     Apesar desses momentos em que você tem de parar para tentar entender algum conceito, a narrativa é cheia de cenas de tirar o fôlego transcorridas num universo fascinante. No fim de tudo, têm-se a sensação de que valeu a pena acompanhar toda a jornada e após ler a última frase de Mona Lisa Overdrive só se é possível desejar por mais.


“No futuro, existe a matrix. Uma espécie de alucinação coletiva digital, na qual a humanidade se conecta para, virtualmente, saber de tudo sobre tudo. ”


2 comentários:

  1. Nossa, que coincidência. Eu vim aqui visitar seu blog e olha só, resenha justamente do livro que estou lendo hahah Eu to achando Neuromancer um pouco confuso, parece que eu não to entendendo ou absorvendo muita informação que a história tá querendo me passa. Mas posso dizer que as coisas que eu assimilei eu curti muito (pelo menos até agora, ainda estou terminando o livro).

    Ótimo post!

    Beijins,
    Um Metro e Meio de Livros

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mulher, eu estou abismada com o número de pessoas que fiquei sabendo que leram, ou começaram a ler, essa trilogia nos últimos três meses.

      Como eu disse mais no finalzinho do texto, o Gibson joga muita informação crua mesmo, principalmente em Neuromancer. Não sei qual é a edição do livro que está lendo, mas se for a das capas que tem no post, valeria dar uma olhada nos textos de apresentação e no glossário ao final do livro. Se for a edição comemorativa, tem três contos do Gibson sobre o universo de Neuromancer nessa edição e nesses contos ele introduz alguns conceitos que no romance são bem jogados. Lendo os contos antes fica mais fácil entender.

      Obrigada pelo comentário.

      Excluir